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Não se deixe embrutecer



O dia amanheceu muito frio, mas precisava sair e quando cheguei ao carro, estava coberto de gelo. O vidro não tinha visibilidade alguma e, mesmo jogando água, insistia em não sair, pois estava rijo, petrificado e ali, enquanto tentava remover o gelo do para-brisa do carro, recordei-me da bela oração musicada por Mercedes Sosa que diz:


"Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria
Eu só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Pois não posso dar a outra face
Se já fui machucado brutalmente
Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Toda pobre inocência desta gente
É um monstro grande e pisa forte
Toda pobre inocência desta gente
Eu só peço a Deus
Que a mentira não me seja indiferente
Se um só traidor tem mais poder que um povo
Que este povo não esqueça facilmente
Eu só peço a Deus
Que o futuro não me seja indiferente
Sem ter que fugir desenganado
Pra viver uma cultura diferente"

Eu também peço a Deus que Ele jamais permita que eu venha a me embrutecer, que Ele jamais permita que meu coração se petrifique e eu me torne uma pessoa insensível. Que nunca a dor do outro me seja indiferente e que eu jamais perca a minha humanidade.

O dia amanheceu gelado, um frio intenso e os carros cobertos de gelo e como eles, percebo que coração de muita gente virou uma pedra de gelo. Vejo com tristeza que muitos dos que são “religiosos” vivem faustos e não se importam com a tragédia e dor do próximo, tal e qual os religiosos da parábola do bom samaritano (Lc 10.30-37). Tais pessoas que se tornaram indiferentes, que olham somente para elas próprias e são incapazes de manifestar compaixão.

Tal e qual Mercedes Sosa, eu peço que a dor não me seja indiferente, mas também peço que ela não se torne um veneno para perder a fé, pois desejo ter a mesma sensibilidade que teve Elie Wiesel, prêmio Nobel, Judeu, sobrevivente do Holocausto, que num determinado dia, juntamente com outros prisioneiros, foram obrigados a testemunhar o enforcamento de dois homens e um menino judeu. Os homens morreram quase que instantaneamente, mas o menino levou aproximadamente meia hora, e enquanto ele se debatia, alguém atrás de Elie sussurrava: “Onde Ele está?” e o próprio Elie sentiu a pergunta brotando em si: “Onde está Deus?”, e assim, pode ouvir uma suave voz interior dizendo “Ele está ali, na forca”. Diante de todo o sofrimento que estamos vendo, de tantas mortes, precisamos dizer que Deus está com os que sofrem e padecem.

O frio é cortante, queima e o gelo duro e assim, corro o risco de ser corrido pelas feridas da vida e embrutecer, para que isso não aconteça preciso reconhecer que estou frágil, mas como escreveu Caio Fábio, “a ação de Deus se manifesta através de gente assim – como Elias, você e eu – gente que oscila, claudica, ora está lá em cima, ora lá embaixo, ora nas nuvens, ora em abismos existenciais, profundos buracos negros. Enfim, gente que experimenta seu próprio estado psicológico com variações. Aliás, chego mesmo a crer que para que Deus nos use é preciso que sejamos capazes de experimentar depressão, tristeza, e imensa fraqueza. Em outras palavras: é necessário que sejamos humanos. Isso porque a graça só se aperfeiçoa quando encontra nossa real humanidade (II Co 12.6-9)”.

Espero nunca vir a me embrutecer pelos tecidos da religiosidade triunfante que nega as dores do mundo e a sua própria dor, como também nunca vir a perder a fé e questionar onde está Deus. Quero apenas viver com as minhas lutas e ambiguidades, mantendo a minha humanidade sem nunca perder a sensibilidade e o amor ao próximo.


#vida #conselhos #fé #Deus #sensibilidade

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