Saudade do meu velho

Todos nós somos feitos de lembranças e as nossas memórias e experiências determinarão o nosso modo de agir, contribuindo para sermos o que somos, por causa das informações que carregamos conosco. Nesse sentido, desejo partilhar um momento muito especial, que aconteceu de maneira inesperada, mas que manifestou em mim aquele que carrego em meu ser, com todo prazer.
Aquele dia parecia que seria como outro qualquer, vivendo as atividades normais. Levantei-me cedo para levar os filhos à escola e depois encontrei o amigo que iria levá-lo para o aeroporto. Decidi, pegar alguns CD’s para escutarmos durante o nosso percurso. A vida nos apronta cada surpresa! Estávamos escutando música e seguindo a viagem tranquilamente. O tema da nossa conversa era a família e sem perceber, o CD que estava tocando era de Toquinho, «A Luz do Solo». Não tem jeito, minha memória é musical e aí, fui levado para minha querida Manaus, minha terra natal, que trago impregnada em mim. Lembrei-me das tardes em que ficava deliciando-me com as músicas de Vinícius e Toquinho. Foi neste momento que bateu uma saudade danada do meu Velho.
Falei para o meu amigo que o Velho era uma pessoa muito especial, mas disse-lhe que minha grande confidente era minha mãe. Ela foi o meu modelo de cristianismo. Mas meu Pai, ah, o Velho era especial. E a saudade chegou sem pedir permissão. Alojou-se no meu peito e apertou todo meu ser. Ela deixou-me sem palavras, com um grande nó na garganta.
Por ter memória musical, tenho músicas para ocasiões especiais da minha vida e para pessoas especiais e o meu Velho era e é muito especial. Aquele seu jeito brincalhão, a maneira como era com os seus amigos, a sua generosidade para com as pessoas e a forma como dizia o que tinha que ser dito sem medo, tudo isso fazia do Velho um cara sensacional. Ele foi alguém que amou do seu jeito, ainda que isso tenha sido complicado no princípio. Mas lembro-me do dia que minha irmã formou-se em Direito e o quanto ele estava radiante, realizado. Já não era o mesmo, estava debilitado por causa dos AVCs que sofreu, mas conversamos muito naquele dia, a dizer-lhe à minha irmã que o seu grande sonho estava concretizado pois já tinha um filho formado em Direito mas também virou-se para mim para dizer-me que ainda havia tempo para que eu fizesse Direito ou Medicina.
Falei um pouco com o meu Velho e naquele dia, ele falou com a voz embargada que nunca nos pode dar grandes coisas, mas deu-nos o que podia, educação e um nome. Disse-lhe que ele nos tinha dado o melhor. Ele nos ensinou a amar o Senhor. Falei-lhe que sentia orgulho de tê-lo como pai. Como gosto de contar suas histórias e ouvir as histórias acerca daquele Velho.
O CD de Toquinho ficou tocando o tempo todo. Ouvi o CD o dia todo. Ouvi a música com meu filho que se encanta com a musicalidade de Toquinho, mas eu a ouvia recordando aquele adolescente que desfrutava daqueles momentos escutando as músicas no seu aparelho 3 em 1. Lembrei-me daquele menino que sonhava com o seu futuro ao ouvir a canção «O Filho Que Eu Quero Ter». Imaginava-me como meu Velho, querendo ser como ele e hoje olho e vejo que paradoxalmente, tudo aquilo que eu negava naquele Velho, eu carrego e trago em mim. Seus gestos e trejeitos. A aparência física e até mesmo a capacidade de falar que ele tinha como um dom natural que eu também tenho.
Faz treze anos que meu Velho dormiu. Parece que foi ontem, tive a oportunidade de dizer-lhe adeus. Fui de Coimbra para Manaus só para me despedir. E como diz a canção de Toquinho eu pude dizer ao meu Velho:
“Dorme meu pai sem cuidado,
Dorme que ao entardecer,
Teu filho sonha acordado,
Com o filho que ele quer ter”.
Sonhei antes com o filho que queria ter. Pela graça de Deus tenho um casal. Porém como diz a canção, tive a oportunidade e o privilégio de poder dizer ao meu velho que podia dormir descansado, pois nós estávamos bem.
Hoje deu saudade do Velho e hoje recordo de despedir-me dele, no leito da UTI e ali tal como José, eu e minhas irmãs nos laçamos sobre seu rosto, o beijamos e choramos (Gn 50.1). Despedi-me de meu Velho e o homenageei em vida, como ele queria e hoje ele vive em mim e além de mim e eu aguardo o nosso reencontro.
Espero que meus filhos tenham o mesmo orgulho de mim como eu tive e tenho do meu Velho, que foi colega de ministério, amigo, irmão, mas acima de tudo e com gratidão e orgulho digo: Pai.